De: Paula Morais - "Dom Quixotes e Sanchos Pança"

Submetido por taf em Sexta, 2013-03-01 23:24

No contexto de troca de opiniões entre amigos sobre a interpretação da actualmente famosa lei dos limites à renovação sucessiva de mandatos (Lei 46/2005), perguntaram-me se a minha opinião podia ser publicada aqui n'A Baixa. Atendi ao pedido. Comecei por dizer que técnica de interpretação de leis é complexa e abrange vários âmbitos de análise (contexto histórico, grafia, gramática, título da lei, organização e apresentação dos artigos, das alíneas, dos pontos... comparação com outros textos legais, etc.), e que como não tenho formação académica “oficial” em Direito não me sentia bem em insistir muito. Ora na minha opinião, e na qualidade de aplicadora de legislação - ainda que numa área muito específica mas bastante sujeita a interpretação (o urbanismo) -, a Lei 46/2005 não necessita sequer de interpretação uma vez que o conteúdo se apresenta claro.

Tenho lido e ouvido algumas notícias com a opinião de alguns juristas (alguns deles professores nas Universidades de Coimbra e de Lisboa e que, pelo que sei, são pessoas com sabedoria neste tema de analisar e aplicar leis) nas quais referem que a lei em causa necessita de ser “clarificada, para bem de todos”... Confesso que não compreendo esta resposta, ou aliás, entendo que como tais juristas além de darem aulas têm também os vulgarmente chamados “tachos” com muitas autarquias, ou os legalmente designados de ajustes directos – aliás "tachos" com muitos presidentes de câmara (ou na versão agora em voga “com muitos presidentes da câmara”), fazendo pareceres, escrevendo regulamentos... optaram por não dizer o tecnicamente acertado (que é – a lei está clara) e optaram pela resposta ambígua “politicamente correcta” do “é melhor clarificar, para bem de todos”... pois caso contrário, opino eu, poderiam ficar “mal vistos” com os tais presidentes de/da câmara que lhe vão adjudicando os “tachos” (ajustes directos)...

E porque é que eu entendo que a lei é clara?

  • 1.º O título da lei (que é muito importante na aplicação da lei, uma vez que é o título que vai balizar o âmbito de aplicação da lei) é: “Estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais” - ou seja é uma lei cujo âmbito é limitar a renovação sucessiva de mandatos (mandato enquanto acção renovada) dos presidentes (pessoas titulares de um cargo) dos órgãos executivos de ou das (tanto faz, pois ambas as preposições identificam em abstrato o objecto) autarquias locais (ou seja, municípios e juntas de freguesia). São os “mandatos” que passam a ser limitados para os presidentes de/da câmara e de/da junta de freguesia uma vez que apenas podem ser eleitos no máximo 3 vezes seguidas, de acordo com a lei.
  • 2.º Tanto faz ser o “de câmara” como o “da câmara” uma vez que o que se limita é o número de mandatos... por exemplo, se um presidente se candidata pela 4.ª vez a uma autarquia (mesmo que seja outra territorialmente) já não está a cumprir a lei porque já estará no seu 4.º “mandato consecutivo”, e que a lei prevê sejam só 3 no máximo. Como metáfora, imagine-se por exemplo, substituirmos a lei por algo do género: Lei que “Estabelece limites à renovação sucessiva de risos dos encarregados de educação dos estudantes de/do liceu” - Independentemente de ser “de liceu” ou “do liceu” (uma vez que “o liceu” é utilizado sempre de forma geral), os pais dos alunos não podem rir mais do que 3 vezes seguidas.

Claro que a tudo isto há que somar outros temas, como o contexto da lei, a vontade do órgão que criou a lei e que pode sempre que tiver vontade alterá-la, modificá-la ou até dar-lhe outro sentido (neste caso a Assembleia da República), sem esquecer, claro, o suporte dos princípios constitucionais - o chamado princípio da renovação - e que refere no Artigo 118.º que "ninguém pode exercer a título vitalício qualquer cargo político de âmbito nacional, regional ou local", referindo ainda que "a lei pode determinar limites à renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos".

Reconheço que a minha opinião sobre a Lei 46/2005 não necessitar de ser clarificada não passa de uma opinião, e reconheço também que os textos das leis podem comportar múltiplos sentidos, e que são naturalmente os juristas as pessoas habilitadas à actividade de fixar o sentido e o alcance dos mesmos. No entanto, e dos conhecimentos e experiências de que disponho, como aplicadora de outras leis, ao observar e ouvir o que muito se tem dito sobre a Lei 46/2005, lembro-me sempre do diálogo entre o Dom Quixote e o seu escudeiro Sancho Pança sobre os moinhos de vento numa planície da Andaluzia:
- "A sorte está do nosso lado, amigo Sancho Pança. Olhai além, mais de trinta monstruosos gigantes, a quem vou vencer em combate e tirar a vida. Com os despojos começaremos a nossa riqueza, que esta é uma guerra justa e é um grande serviço que prestamos a Deus, limpar esta má semente da face da terra."
- "Quais gigantes? – perguntou Sancho Pança."