De: Paulo V. Araújo - "Tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos possíveis"

Submetido por taf em Terça, 2009-07-07 12:52

Quem se bate por utopias pode ser perigoso; mas os anti-utopistas, ou discípulos de Pangloss (cuja filosofia se encontra resumida no título), são deprimentes. Os leitores da Baixa do Porto foram há pouco brindados com dois textos impregnados dessa filosofia ultra-optimista: o de Manuela Monteiro e o de José Paulo Andrade. E que nos dizem esses textos? Que certas obras realizadas no Porto foram excelentes, por duas razões óbvias: as obras foram de facto feitas, e por isso a sua existência é boa e indiscutível (tudo quanto foi feito e existe é bom e indiscutível); e o nosso mundo, com o estilo de vida que tanto prezamos, seria inimaginável sem elas. Donde se deduz que os que se opuseram a tais obras não passaram de velhos do Restelo (ou, pior ainda, de velhos da horta) incapazes de acertar o passo com as mudanças do mundo.

Cândido aprendeu à sua custa que a filosofia do seu mestre Pangloss tinha sérias limitações. Não desejo que estes novos discípulos do mestre passem por infortúnios semelhantes, mas gostava de contrapor, a esse entusiasmo obreirista, outro modo de ver as coisas. E, de passagem, aproveito para corrigir o excesso de ligeireza de algumas afirmações.

Manuela Monteiro dá três exemplos de coisas boas que felizmente não foram travadas pela «ortodoxia paralisante». Abstenho-me de discutir o caso do Museu Gulbenkian, por desconhecer os pormenores, mas os outros dois casos (um deles, a horta de Serralves, destruída para se construir o Museu de Arte Contemporânea, também foi referido por José Paulo Andrade) são de bradar aos céus. A Manuela Monteiro acha mesmo que o Jardim do Marquês ficou «muito melhor» depois de construída a estação de metro no subsolo? Olhe que a minha opinião (e a de muitas outras pessoas) é bastante diferente, como pode ver aqui. Mas a sua opinião é tão taxativa, e tão radicalmente oposta à minha, que me parece perda de tempo discutirmos o assunto.

E há a horta de Serralves, em que José Paulo Andrade cita um parágrafo de quem na altura se opôs à construção do museu:

«Quando um museu de arte moderna destrói a horta de Serralves, destruindo assim a unidade de uma das últimas quintas de recreio do Porto (fazendo perder sentido ao todo que lá existia) o edifício pode ser a oitava maravilha do mundo e criar um espaço magnífico, admita-se em tese que seja melhor até que o relevo cultural de uma das últimas quintas de recreio do Porto, mas será sempre sobre um acto de destruição patrimonial que se terá erguido o novo património.»

José Paulo Andrade conclui, triunfante, que o museu é hoje uma realidade indiscutível e que já ninguém chora a perda da horta. Mas o que me parece igualmente indiscutível é que a destruição do património para o qual o parágrafo alertava foi concretizada, e que a unidade patrimonial da Quinta de Serralves foi destruída. Hoje a horta não existe, nem existe nada de semelhante (o jardim das aromáticas, que na altura foi uma espécie de compensação pela perda da horta, é de facto outra coisa, e em todo o caso está praticamente ao abandono). Claro, dirá José Paulo Andrade, mas existe o museu, que é coisa muito melhor do que a horta e muito mais visitada.

Estes casos parecem resumir-se ao mesmo princípio: se queremos progresso (mais «cultura», melhor «mobilidade», escolas com «melhores condições»), temos de sacrificar outros «valores menores» (como sejam a horta, o jardim, as árvores). Acontece que esses «valores menores» só são assim considerados porque os poderes públicos que temos, e a própria mentalidade nacional, não os valorizam devidamente. Os dilemas apresentados (ou museu ou horta; ou jardim ou metro; ou árvores ou escolas) só o são porque as alternativas nunca são seriamente estudadas. E não são estudadas porque no outro prato da balança estão coisas que, no entender do senso comum, valem pouco mais que um chavo.

Um exemplo de âmbito mais geral para ilustrar isso mesmo. Lendo os jornais, folheando publicações culturais, lendo opiniões e entrevistas dos «agentes culturais», depressa ficamos a saber que o ministro da Cultura é um desastre (como já tinha sido a sua antecessora). Que eu saiba, porém, nem este ministro nem a sua antecessora têm como objectivo central da sua política a destruição sistemática dos museus e de todo o património cultural do país. Aquele ministro que de facto é um coveiro do património que lhe cabe gerir é o actual ministro do Ambiente, certamente o pior ministro (juntando todos os ministérios de todos os governos) de que há memória desde o fim do PREC. No entanto, tal ministro não é um escândalo público e os jornais não se enchem de artigos de opinião a denunciá-lo. Porquê? Porque a conservação da natureza não é importante, ao passo que a cultura já é.

Admito que as pessoas até gostem de jardins, parques e árvores. Têm é dificuldade em conceber que tais coisas tenham um valor próprio, que possa sobrepor-se a outros valores. As árvores e os jardins, entendem elas, podem ser a cereja em cima do bolo, e tanto melhor se o bolo for um edifício desenhado por Siza Vieira ou uma estação de metro de Souto Mouro. O que faz falta é entender que as árvores, a horta e os jardins podem constituir, por si só, o bolo e a cereja.

Saudações,
Paulo Ventura Araújo

P.S. O José Paulo Andrade escreve que o Palácio é um «pequeno jardim local, actualmente não muito utilizado». Isso não é verdade: os jardins do Palácio são os mais frequentados da cidade (muito mais do que os de Serralves, onde à semana pouca gente se vê). Além dos muitos turistas e utentes habituais, quase diariamente há visitas de escolas. Muita gente vai para a esplanada, muitos outros frequentam aulas de ioga, muitos pais levam as crianças ao parque infantil, os lugares de estudo na biblioteca estão frequentemente todos ocupados. Não é para servir melhor estes muitos utilizadores do jardim que a Câmara quer destruir o lago e acabar com a esplanada.